Cansado de ficar trancado dentro de casa, desci um pouco para ver a rua. Gostava de me sentar um pouco em uma praça perto de casa, frequentada por casais que ficam a apreciar a noite, porém, nos dias mais frios, como hoje, a praça costumava a ficar como se fosse um baldio desolado.
Sai. Tranquei a porta atrás de mim e corri para alcançar o elevador. Ao chegar no elevador, entrei e, para minha surpresa, deparei com uma pessoa, ou melhor, uma personalidade, que há meses tentava encontrar, sem sucesso.
- Senhora Ruth? perguntei espantado ao entrar.
- Olá, respondeu ela secamente.
- Tentei marcar uma entrevista com a senhora e a sua agente me disse que a senhora estava na Europa para uma conferência. A senhora cancelou a viagem? - perguntei.
- Ah, a minha sobrinha Helena... sempre a me blindar. Uma boa menina que vive a me proteger da imprensa ocidental, lacaios subservientes das agências de notícias de Washington DC que, como é sabido, não me apetece ...
- Muito profissional a sua agente, além de ser uma linda mulher, tal como a tia - brinquei.
Há meses tentava uma entrevista com a senhora Ruth Petit, Prêmio Pulitzer do ano passado pelo livro "A Queda do Império".
Ruth era uma senhora de uns 75 anos ou mais que perdera, quando ainda era bem menina, o pai assassinado pela inteligência anglo-saxônica durante a segunda guerra mundial - um correspondente de guerra, e também ganhador do mesmo prêmio, que denunciara os crimes de guerra cometidos pelos ingleses, americanos e franceses.
Depois da morte de Bernard Dubois Petit, seu pai, ela veio para cá com sua mãe, Anita Petit e, sua irmã, Caroline Petit, e aqui ficaram desde então.
Na verdade, difícil um jornalista que atua como correspondente internacional não conhecer a obra dela que, para muitos, é superior ao trabalho do seu pai. Petit é muito conhecida e respeitada por muitos, uma vez que, além de extremamente competente, é muito linda e agradável - e, como sabemos, a beleza e outros atributos, além do talento, acabam abrindo algumas portas a mais.
Devido a tantos pontos positivos e atributos, ela tornou-se uma mulher a frente de seu tempo e, por uma infinidade de vezes, foi e é notícia em assuntos relacionados à psicologia social, relações internacionais e questões humanitárias.
O que sei é que me tornei-me um admirador da extensa obra de Ruth Petit e, sendo assim, o que sei da vida dela é muito mais do que os jornais noticiam, coisa de fã mesmo.
Ao passarmos pela portaria, perguntei:
- Podemos marcar uma entrevista sem precisar falar antes com a Helena, sua protetora? Em primeiro lugar, tenho medo dela me barrar novamente. Em segundo - o que mais me apavora, receio me encantar por ela e por isso quero evitá-la ao máximo, brinquei.
Ela me olhou com um sorriso marcante e com aqueles olhos extremamente expressivos, parou um pouco e depois de me avaliar por uns segundos, retribuiu a brincadeira:
- Pelo que você representa na literatura, tem apenas uma pergunta e não mais de 12 a 15 caracteres para me convencer a não te encaminhar para a minha sobrinha Helena que, como a tia, é uma encantadora de corações capaz de devorar com muita inteligência mentes humanas e sensíveis, como a sua, disse provocativa.
- Combinado, senhorita Petit, disse eu.
Pensei um pouco, olhei para ela retribuindo o sorriso e perguntei:
- Então, para você, o que significa uma "Cidade Vazia"?
De repente ela parou e ficou por um tempo em silêncio. Colocou a mão no queijo e perguntou sem parecer aborrecida.
- Como vazou o título do meu próximo livro? - quis saber ela.
Retribuí a provocação:
- Ainda nem usei os meus 12 caracteres e já consegui uma exclusiva?
Com um sorriso lindo no rosto novamente, Petit me olhou e disse:
- E para você: o que significa uma "Cidade Vazia"? - quis saber ela. Depois de um pouco de tempo, apenas uma fração de segundo, arrematou: Não saberia me dizer rapaz?
- Que tal se conversássemos mais a respeito? - perguntei eu. Pago o vinho e você apenas divaga livremente sobre o tema.
As gargalhadas ela brincou:
- Já fui jornalista raso e sei que, o que se ganha na profissão em início de carreira, não dá para um prato feito - eu pago o vinho e, de quebra, ainda concedo a entrevista, disse sem ser grosseira e com a costumeira simpatia.
Rimos e seguimos em frente naquela noite fria numa cidade com suas ruas quase desertas e com o vento a cortar sem piedade a nossa pele. Minutos depois, chegamos a um bar café que ela gostava de passar às tardes. Ela sentou-se em sua mesa predileta, já reservada para ela, e disse.
- Sente-se, por gentileza. E inclinando-se para a frente, perguntou com muita polidez e serenidade: Qual o seu nome? Me desculpe não saber, viu - completou ela... é que às vezes nos encontramos no elevador, mas nunca fomos apresentados um ao outro.
- João Benário, disse eu.
- João - amo esse nome e será assim que irei chamá-lo. Parou um pouco, olhou bem em meus olhos - um olhar profundamente meigo, inteligente e cheio de expressividade, e disse:
- "Cidade Vazia" tem diversos significados de acordo com que cada um de nós somos e sentimos bem no fundo de nossa alma, por assim dizer.
- Hum. tocante isso, hein ... Acho que acabo de iniciar a entrevista que será a minha maior obra-prima e que, de quebra, me dará o meu primeiro Pulitzer, brinquei.
sorrindo e sem me responder, continuou:
- Para mim, Cidade Vazia significa não poder ter a minha juventude de volta, não poder ter meu pai de volta, não ter tido filhos...
- Entendo.
- Todos esses fatores são parte da zona onde penetro profundamente em minha Cidade Vazia e que, por sua vez, torno-me profundamente triste, vulnerável e por onde mergulho fundo em um estado depressivo caso deixo me levar por esses pensamentos que podem me "trancar" em um porão escuro, úmido e frio em minha temida cidade vazia...
Parou um pouco e, sem sorrir, bebeu um pouco do vinho recém deixado pelo garçom e continuou.
- Então, o meu novo livro será sobre diversas personagens que, cada uma delas, vivem em suas Cidades Vazias sem que essas personagens possam cruzar-se entre si, voltar à cena... Tais personagens podem simplesmente desaparecer e nunca mais sequer ser citada em minha obra.
- Uau - murmurei como um fã apaixonado.
Ela parou, tomou mais um gole de vinho, e reafirmou.
- Sim, elas, as personagens, podem simplesmente desaparecer e nunca mais surgir em meu novo livro.
- Compreendo. E cada um dessas personagens terá elementos psicológicos que você estuda a fundo, é claro.
Petit me sorriu novamente e disse:
- Está querendo saber demais garoto... mas confesso que gostei de você menino, disse me com carinho.
Ficamos os dois sem falar, apenas olhando um para o outro. Confesso que tive muita vontade de abraçá-la como se abraçasse a uma amiga de longa data, tal era o respeito e admiração eu tinha por ela e por tudo o que ela representava.
- Olha, pode continuar a ligar para a Helena, que tem muito mais charme e juventude do que eu - e até acho que ela iria gostar de ser convidada por um belo e intrigante rapaz para sair longe daquele escritório que acaba, penso eu, por ser a sua "Cidade Vazia", coitada...
Parou um pouco para tomar mais um pouco de vinho e para ganhar fôlego, e disse:
- Porém, tome meu número pessoal para assuntos relacionados ao jornalismo investigativo que você executa tão bem.
Peguei o número dela e agradeci.
- Voltaremos a nos encontrar em breve, João - e, da próxima vez, vou querer saber como o nome do livro foi vazado, viu - disse ela sorrindo.
Voltando para casa mal cabia em mim. Imagina, Ruth Petit frente a frente comigo e ainda, de quebra, me deixou o seu número pessoal...
Tinha certeza que a partir dessa entrevista tudo em minha vida ganharia um significado de tal relevância que nada mais poderia me parar ou prender.
Entrei em casa, abri uma garrafa de vinho e corri para escrever toda a agitação que borbulhava em meu cérebro e que tomava conta de todo o meu ser... só parei de escrever aquela noite quando todo o meu sangue sumiu de mim e, sem poder mais continuar, adormeci profundamente e exausto.
FRONTE EM PARIS, 1º DE JANEIRO DE 1915 - "A GRANDE GUERRA"
https://cidadevazia.comunidades.net/revisaoparis0001
GUILHERME, CIDADE VAZIA -
A "Cidade Vazia" onde Guilherme vivia estava muito fria novamente. De onde ele morova, Guilherme consegue ver diversos ângulos dela. Hoje, ela está vazia, mas ela já foi "cheia de importância". Atualmente, apenas poucos perambulam pelas ruas, avenidas e ruas, sem saber exatamente para aonde ir e em passos indecisos, pisando sobre imprecisões que lhes roubam a alma.
De longe, Guilherme avista um bar cheio de homens bêbados. Num canto, um traficante repassa drogas a um jovem bem arrumado, vestindo um sobretudo cinza escuro. O jovem, depois de pegar um pacote, se esvai na noite fria e escura sem ter a certeza se ainda vera a luz do dia.
Uma mulher com roupa muito decotada, sentada em um canto mais escuro do bar, espera por mais um cliente - o terceiro daquela dia e a noite ainda estava apenas a começar.
Guilherme olha para o relógio. Ainda era pouco mais das 18 horas e a cidade vazia ao longe estava começando a se agitar naquele canto mais movimentado dela, naquele mundo que era a cidade vazia daqueles pobres seres humanos que perambulavam sem nenhum rumo nem futuro.
Como lhe era caro ver aquela cidade que outrora era tão cheia de vida estar cheia de tanta degradação e entregue aos vários grupos rivais que disputam o crime organizado.
Ele sai da sacada e entra em seu apartamento, em sua cidade vazia, no seu mundo solitário de triste. Como estava muito frio, fechou tudo e ficou ali a bebericar o seu vinho.
Em sua mente a lembrança de Mariana ainda era muito presente e lembra-se com ricos detalhes, como se fosse hoje, o dia em que ela dormiu e nunca mais acordou, tornando a sua vida vazia e sem sentido.
Guilherme precisava se livrar urgentemente daquele pensamento cravado em suas entranhas, a sugar todo o leite e a energia que o mantinha vivo, ou melhor, com vontade de viver.
Olhou mais uma vez para a estante de livros e caminho até ela. Parou um pouco e, em seguida, apanhou uma caixa que ficava escondida entre os livros.
Levou a caixa até a mesinha ao lado de sua cadeira de descansar, abriu a caixa e apanhou a sua arma. Enquanto se entupia de um monte de entorpecentes noite a dentro para apagar todas as lembranças da sua vida com Mariana, deixou a sua arma de fogo repousada em cima da caixa até que conseguisse a coragem suficiente para fazer o que ele planejara a muito pouco tempo depois do dia que perdera a sua amada companheira.
Em Brasília, há uns 500 quilômetros de distância de onde Guilherme morava em sua cidade vazia, o aparelho de Carmem, sua mãe, tocou no meio da noite. Meio sonolenta ela atende.
- Alô.
- Carmem, aqui é Sueli a analista do Guilherme.
- Sim. Aconteceu algo com ele?
Depois de uma breve conversa, Carmem desligou o aparelho e mergulhou em sua cidade vazia.
Horas depois, estava a enterrar mais um filho que, no caso de Guilherme, jogou-se do 12º andar, logo depois de atirar contra a própria vida.