A noite estava muito fria e úmida. Todos estavam com muita fome e frio e, naquele momento, para piorar, os famigerados soldados estavam sem nada para comer.
Um rato estava a poucos metros, em cima dos apetrechos de Emanuelle que, com asco, espantou aquele roedor nojento e puxou as suas coisas para mais perto de si.
O cenário estava todo montado. De um lado do fronte estava Emanuelle, um jovem francês, do outro, um alemão chamado Frederick que, devido o horror da guerra, deixou de ser um ser humano.
Emanuelle estava encostado na parede úmida dentro de uma vala aberta de uns 2 metros de profundidade com 1.8 metros de largura, cavado pelos próprios soldados para abrigar milhares de homens que tentavam impedir que Paris, a 60 quilômetros dali, fosse invadida pelo impiedoso exercito alemão.
Estavam passando fome, frio, sede e vivendo na penúria, se definhando, para defender Paris e impedir o avanço alemão.
- Que insensatez, pensou ele.
Se dependesse dele, os alemães teriam o que quisessem, desde que isso representasse o fim daquele período de enorme tristeza.
Frederick também estava com muito frio e úmido em uma vala, só que do lado alemão.
Era quase meia noite e todos, independente da nacionalidade e para quem e porque lutavam, aguardavam ansiosamente pelo novo ano, e que viesse logo o fim daquela carnificina impiedosa.
Na verdade, depois dos primeiros meses de guerra, pouco se sabia a respeito do futuro da humanidade. Há pouco mais de 3 meses, ninguém imaginava que tudo iria mudar tão rápido na Europa que iniciara um apogeu momentâneo, um período de prosperidade e invenções.
Frederick estava ali há meses, entediado com tudo e com todos e, devido ao seu mal comportamento depois de ter visto o seu irmão mais jovem ser alvejado em sua frente, sempre era perseguido e odiado pelos generais alemães que sempre o colocavam nas priores partes das trincheiras e isso deixava ele ainda mais feroz e desumano.
As trincheiras alemãs também estavam tomadas de ratos que transitavam pelos alimentos dos soldados, entre os mortos que apodreciam e entre tudo por ali. As moscas e outros insetos estavam em todos os cantos daquele ambiente insalubre e horrível.
Perto dele, um soldado alemão baixou para fazer a suas necessidades fisiológicas dentro da própria trincheiras. O cheiro vindo até ele era horrível e a vontade de Frederick era atirar contra o próprio soldado de seu país e, só não o fez, porque estava concentrado demais para se distrair com aquele verme alemão.
Sim, o cheiro de fezes e urina era comum nas trincheiras e, somado a esse cheiro horrível, o cheiro dos cadáveres dos soldados mortos que apodreciam por meses ali a céu aberto tornava tudo naquele ambiente sombrio, um verdadeiro inferno e quase impossível de ser entendido, mesmo se descrito por aqueles que estavam ali a presenciar em tempo real toda aquela bestialidade humana.
Sim, a situação no fronte da primeira grande guerra era deplorável. A que ponto os homens chegaram em apenas 3 meses de guerra? Para saber os horrores da guerra, não bastava apenas ouvir falar. Precisa estar ali no meio deles, em uma fétida e podre trincheira cheia de ratos, homens mortos ou doentes apodrecendo e próximo a um constante cheiro de urina e vezes humanas que inundava todo o ambiente insalubre para compreender o que realmente era aquela guerra miserável.
Perto dele, e de todo aquele ambiente degradante, suprimentos estavam estocados em péssimas condições e de onde se viam os ratos e baratas transitarem com total liberdade. E era esses alimentos tomados de sujos insetos, e que agora estava trancado e vigiado até os dentes, que iria alimentar todo aquele efetivo militar alemão no dia seguinte.
A proliferação de insetos e pequenos animais, atraídos pelos cadáveres e pelas fezes e urina, também era muito comum.
Frederick já não aguentava mais. Além de tudo, ainda estava exposto, assim como os outros soldados, à piores condições climáticas – chuva, neve, frio intenso, inundações de água suja, sem contar os ataques, bombardeios inimigos, morteiros, disparo de de armas de fogo, e as baixas devido aos ataques amigos que, muitas vezes, ocorria no campo de batalha.
No lado francês Emanuelle contava os poucos segundos. Logo chegaria 1915 e, quem sabe, logo poderia voltar para Paris e encontrar-se com Victoria, sua esposa, e o bebê de poucos meses que ficara com ela. Emanuelle pegou um retrato de Victória em seu bolso e, usando uma iluminação que conseguira, olhou para aquele rosto angelical mais uma vez.
Do outro lado do fronte, Frederick, com olhos muito azuis e coração gelado e desumano devido aos horrores da guerra, olhou mais uma vez em seu relógio de bolso. Um minuto para a meia noite. Pela luz vinda do lado francês, pode ver nitidamente a cabeça do belo e sorridente jovem soldado de uniforme azul.
Durante os próximos 60 segundos os dois ficaram totalmente envolvidos em seus próprios afazeres.
Emanuelle, absorto em seus pensamentos e feliz com a perspectiva de um reencontro com sua amada e seu filhinho Edgar, nem se deu conta de que fornecia uma iluminação adequada para o inimigo, além de estar muito bem enquadrado na mira de uma arma de fogo.
Frederick a uns 100 metros de distância podia tanto ver o seu alvo como perceber detalhes de tudo ao redor de Emanuelle. Fez a mira com muito cuidado, um cigarro nos lábios, o corpo frio e trêmulo e um estômago a roncar de fome como os outros soldados maltrapilhos e famintos... Puxou mais um trago, olhou mais uma vez para o relógio, deu um sorriso sarcástico e puxou o gatilho antes que Emanuelle pudesse "respirar o ano de 1915".
Exatamente a meia noite e um segundo um projétil perfurou o crânio de Emanuelle que, imediatamente, caiu morto e ali ficou sem que ninguém soubesse exatamente quem ele era. A foto daquela jovem, em meio a lama, nunca mais foi encontrada.
Em uma apartamento em Paris, Victória cantava uma velha canção a Edgar que, sem saber, acabara de tornar-se mais um órfão de uma guerra sangrenta e cruel.
O que se sabe sobre ela é que quase nada Victória teria a comemorar com Edgar, seu querido bebe, a apenas um segundo depois da meia noite do dia 1 de janeiro de 1915. Paris, a meia noite e um segundo, era agora uma "Cidade Vazia"... Sim, Paris, apesar de todo agito, tornara-se uma cidade sem vida, onde o medo e ansiedade tomava todos os cantos da cidade. E seria por uma cidade sombria e vazia que aquela jovem caminharia por alguns poucos anos, até também desaparecer, deixando Edgar entregue a uma vida desafortunada.